É provável que, num futuro próximo, se possa assistir ao regresso de duas características que marcavam, até um passado recente, a concessão de crédito à habitação (CH) em Portugal. Uma será o regresso do teste à "taxa de esforço" ao seu valor inicial, isto é, os 3% que vigoraram até outubro de 2023. A outra será o retorno da preferência por CH com prestações mensais indexadas às taxas Euribor. Do primeiro falarei neste artigo e, do segundo, no próximo.
O primeiro dos regressos ao passado no CH, a que deveremos assistir, será o aumento da exigência do teste que é aplicado na avaliação da solvabilidade dos consumidores no processo de concessão de CH. Neste momento, a previsão mais "fácil" relativamente a esta questão seria admitir que este incremento poderá retornar, em breve, ao patamar que teve entre 2017 e outubro de 2023 - isto é, aos 3%, subindo assim do valor atual de apenas 1.5%.
Mas também é possível (e talvez até desejável) que em, alternativa, este "stress test" de natureza macroprudencial possa vir a assumir uma nova formatação que lhe reduza as caraterísticas procíclicas de que padece. Desde 2017 que a avaliação da solvabilidade dos consumidores em processos de concessão de crédito à habitação foi padronizada pelo Banco de Portugal, num formato que passa por aplicar um incremento no valor da Euribor para provocar um "choque" de subida do valor da prestação mensal.
A solvabilidade dos mutuários é atestada positivamente se o rácio que resulta da comparação entre o valor da prestação mensal assim obtido e o rendimento mensal líquido dos proponentes não ultrapassar os 50% (DSTI máxima ou "taxa de esforço máxima"). Este incremento na Euribor é aplicado nas análises de solvabilidade dos CH com taxas de juro variáveis ou mistas (e com maturidades superiores a 10 anos), os quais, diga-se, representam a quase totalidade dos novos contratos de CH. Quando este teste entrou em vigor, já as taxas Euribor estavam em valores negativos, os quais se aprofundaram e chegaram a cerca de -0.5% no último trimestre de 2021.
A rápida subida das médias mensais das taxas Euribor, para valores superiores a 4%, entre a data anterior e o último trimestre de 2023, ultrapassou o valor da Euribor que estava implícita, até 2021, no teste da DSTI máxima e que era cerca de 2.5% (ou pouco superior, mas sempre abaixo de 3%), com as consequências que se fizeram sentir em 2023 e início de 2024.
Por isso, é forçoso admitir que, tal como a oscilação de um pêndulo físico não pára - e inverte a direção - no ponto médio da sua amplitude de deslocação, também os valores extremos das taxas Euribor, para os quais foi idealizado este teste de solvabilidade no CH, não deveriam ter sido procurados dentro do intervalo de valores das Euribor considerados "neutrais" durante os ciclos de política monetária conduzidos pelo BCE na zona euro. Deveriam, isso sim, ter sido fixados em valores iguais (ou pelo menos próximos) aos máximos anteriores registados no historial das taxas Euribor médias mensais e que foram de 5.393% em julho de 2008.
Por isso, uma alternativa ao atual teste à DSTI máxima que iria contrabalançar as atuais características procíclicas que este teste tem, neste momento, seria aplicar, sempre, um valor fixo da Euribor (5.5%, por exemplo) que não variasse com as taxas Euribor de mercado. Assim, para o mesmo nível de rendimento, a capacidade creditícia máxima de um mutuário, no momento da aprovação do CH, não se alteraria durante o ciclo de taxas de juro - o que, aliás, seria uma prática análoga ao que acontece em mercados onde a "norma" na verificação da solvabilidade do mutuário consiste em aplicar um múltiplo ao rendimento anual do consumidor para definir o CH máximo que lhe é atribuível.
Nesta modalidade do teste de solvabilidade, a transmissão da política monetária continuaria a ocorrer através das variações das taxas de esforço efetivas ("reais"), que resultariam das alterações das prestações mensais dos CH com a mudança das taxas Euribor de mercado. Mas não seria amplificada, como é agora, pelo acréscimo que é aplicado à Euribor no teste da "DSTI máxima".
Em contraposição, vimos que o teste de solvabilidade como está "desenhado" atualmente levou a que, no final de 2023, as taxas Euribor que estiveram implícitas nas avaliações de solvabilidade no CH - e por isso na determinação da capacidade máxima de endividamento dos mutuários - tivessem atingido valores superiores a 7%. Isto quando as taxas Euribor se fixaram acima dos 4% no mercado interbancário. Daí que, em novembro de 2023, este incremento tenha sido reduzido de 3.0% para 1.5%, na tentativa de ajustar a nova taxa implícita na DSTI máxima (5.5%=4%+1.5%), ao valor máximo que foi registado na Euribor média mensal no mercado monetário (5.393%).
Só que, desde essa altura, a conjugação de dois fatores - a redução do "incremento" de 3% para 1.5% e a descida de mais de 2% nas taxas Euribor médias - fizeram com que, neste momento, as taxas Euribor implícitas no cálculo da DSTI máxima sejam agora de 3.5%. E poderão inclusivamente vir a descer para 3.25%, se as previsões para os valores mínimos da Euribor (1.75%) se vierem a materializar.
Por isso, o CH que é possível aprovar para particulares que tenham exatamente o mesmo rendimento que tinham no final de 2023 já aumentou em 50% desde essa altura; isto no caso dos CH com maturidades mais longas (entre 35 anos e 40 anos), as quais são possíveis para os mutuários mais jovens. Dito de outra forma, e apenas como um exemplo, se antes seria possível aprovar um máximo de 140 mil euros nessas maturidades, para clientes cujo rendimento líquido fosse compatível com esse valor de CH, agora esses mesmos mutuários, com exatamente o mesmo rendimento, já podem esperar aprovar até 210 mil euros.
Estes mutuários são também os beneficiários das medidas legislativas de apoio à aquisição da primeira habitação, a isenção de IMT, a isenção de parte dos IS aplicáveis e a garantia pessoal do Estado (prosaicamente designada como "financiamento a 100%"), medidas essas com as quais eu, pessoalmente, até concordo. Refira-se que, apenas da última medida, já terão beneficiado mais de 42 mil jovens, sensivelmente desde o início de 2025, altura em que esta medida ficou completamente operacional.
Porém, a oferta de imóveis é "inelástica". Quer isto dizer que, no "curto prazo", o número de novos imóveis que surge no mercado não é (significativamente) sensível ao aumento do seu preço. Isto porque os imóveis demoram bastante tempo a serem construídos ou, em alternativa, a serem recuperados para poderem ser vendidos. Por isso, não pode deixar de se ponderar o efeito que todas estas medidas administrativas têm num mercado imobiliário residencial já de si "sobreaquecido" pela pressão da procura.
A avaliação bancária da habitação é um "indicador avançado" da variação do preço da habitação em Portugal. E, em maio de 2025, o INE divulgou um aumento de 17.1% para este indicador (moradias e apartamentos), mas que atingiu os 21.1% no caso dos apartamentos. Assim foi, sem grandes surpresas que se registou uma subida anual de 16.3% do preço da habitação no trimestre que terminou em março de 2025. Este é o valor mais elevado deste indicador desde que ele começou a ser coligido em 2009.
E esta subida anual poderá até acelerar no segundo trimestre de 2025 - pelo que se impõe uma reflexão integrada sobre todas as medidas administrativas que, para além da pressão na procura de imóveis, estão a provocar a progressão galopante do preço da habitação em Portugal.
José Carlos Tomás
Diretor de Desenvolvimento Novos Negócios da Eupago
in Observador