Já não bastavam os múltiplos esquemas de manipulação de mercado (do tipo “pump and dump”) que estão, ou estiveram, subjacentes à generalidade das “criptomoedas” e que são fortemente reprimidos como crime na legislação sobre mercados de capitais de todas as
jurisdições minimamente reputáveis”.1
Durante 2021, ante a passividade das entidades reguladoras a nível mundial, os tradicionais “esquemas pirâmide” chegaram finalmente ao “faroeste” que é o ecossistema das chamadas “criptomoedas”.
Como já devem ter percebido estamos a referir-nos ao recente colapso da “stablecoin” “algorítmica” TerraUSD e do seu par, a “criptomoeda” Luna ocorrido em 11 de maio e também à prática que se designa por “staking”.2
Esta prática permite o pagamento de juros, a taxas impossíveis3, aos detentores das chamadas “stablecoins”, um tipo de ativo virtual que terá de ser colateralizado por moedas de curso legal ou ativos financeiros.
Não nos vamos deter na explicação das relações entre o par de moedas TerraUSD e Luna (já agora, a “terra” e a “lua”). Tal explicação, para além de ser perfeitamente inútil para a compreensão da essência do que aconteceu (dando “tempo de antena” a um conceito que o confronto com a realidade provou ser ridículo), e pode ser facilmente encontrada em diversos artigos na internet.4
Na realidade, a relação de “arbitragem algorítima” entre este par de “moedas” trata-se apenas de uma pequena manobra de diversão destinada a desviar a atenção daquilo que é verdadeiramente importante e fundamental e que, neste caso, era natureza da “âncora” do sistema TerraUSD / Luna. Para os interessados, a descrição da “âncora” do sistema (o “anchor protocol”), pode ser encontrada em mais um incontornável “whitepaper”.5
Em termos simples, o “algoritmo” que proporcionava a atratividade “stablecoin” TerraUSD mais não era do que a promessa de juros anuais de 20% para que os “investidores” comprassem com esta “stablecoin” com as tradicionais moedas fiduciárias de curso legal.6
Mas a “coisa” ainda fica ainda mais escandalos, se pensarmos que a contratação de empréstimos em TerraUSD que já tinha um custo inferior 7 8 à remuneração dos respetivos “depósitos” (20%) e ainda era subsidiado com a atribuição de uma nova “criptomoeda”.
Quem acreditar que tal “estabilidade algorítmica” não estava predestinada ao colapso e que mais não era um “esquema pirâmide” (do mais tradicional possível), por favor levante a mão para podermos continuar a discutir o assunto.
Até agora a regulamentação específica sobre ativos “virtuais”, ao nível da supervisão financeira, resume-se à que resulta da transposição da diretiva europeia sobre o combate ao branqueamento de capitais (AML 5).
Por sua vez, os reguladores dos mercados de capitais relembraram-nos da legislação existente sobre valores mobiliários, do facto que os depósitos bancários não são valores mobiliários e também sobre a necessidade dos promotores da emissão de “tokens” de “ativos
virtuais” se submeterem à alçada da mesma legislação sobre mercado de capitais, no caso dos “tokens” que pretendam emitir apresentarem as caraterísticas de valores mobiliários e da sua sujeição ao regime relativo ao abuso de mercado o que implicaria (entre outras coisas),
a proibição de esquemas do tipo “pump and dump”. Não consta que tenha sido emitido qualquer “token” que seja regulado como valor mobiliário.
Para ser completamente justo com as diversas entidades reguladoras nacionais importa admitir que uma legislação de âmbito nacional / regional teria tido pouco (ou mesmo nenhum) efeito sobre o ecossistema das “criptomoedas”, o qual sempre procurou, a nível mundial, infiltrar-se em áreas ou em geografias pouco regulamentadas, onde melhor pudesse vicejar.
Ainda assim é de estranhar o que aconteceu porque já existe legislação que identifica os “esquemas pirâmide” como ilegalidades flagrantes. E também porque o fundador da TerraUSD/Luna (um miúdo arrogante e mal educado, como é possível constatar pelos seus posts no Twitter), já tinha no seu currículo o colapso de outra “stablecoin” algorítmica que se chamou “Basis Cash” e que tinha implodido, de forma análoga, no início de 20219. Isto para além da implosão subsequente de outra “stablecoin” algorítmica, o projeto TITAN da Iron Finance.10
No entanto, tamanho desplante teve, pelo menos, o condão de forçar finalmente as entidades reguladoras a agirem. Assim, a presidência dos G7 encarregou o Financial Stability Board (formado em 2009, na altura da crise financeira), de avançar rapidamente na produção de regulação sobre “criptomoedas” e provedores de serviços associados.
Como a legislação futura se vai ser centrar nas “stablecoins” que serão equiparadas a bancos e reguladas como tal (!), basta atentar aos avisos sobre o perigo das “stablecoins” para estabilidade financeira feitos pela Secretária do Tesouro Janet Yellen, não é difícil adivinhar que há, pelo menos, outro desastre com “data anunciada” e que é a “stablecoin” USD Tether.
Ampla literatura que versa as inconsistências e as dúvidas sobre a existência dos ativos financeiros que são representados pelo token” da USD Tether pode ser facilmente encontrada na internet11, bem como também “insinuações” (na forma de artigos académicos) que exploram as relações entre o aumento da quantidade de USD Tether em circulação e a evolução da cotação das principais “criptomoedas”.12
Por fim, ressalvo que não pretendo com este artigo dizer que todos os intervenientes no mercado são desonestos, nem que a inovação financeira e tecnológica associada aos ativos virtuais não tem interesse nenhum.
O interesse dos muitos “exchanges” de “criptomoedas” em operarem corresponde à intenção louvável de proporcionarem uma interface respeitável e honesta entre o ecossistema dos “ativos virtuais” e o sistema financeiro tradicional . Também se pode encontrar a justificação, para a inovação tecnológica nos pagamentos e transferências “cross-border”, no elevado custo das transferências de divisas fiduciárias a nível mundial.13
No entanto, parece finalmente avizinhar-se o advento de uma alteração na atitude das entidades reguladoras reguladoras relativamente à legislação dos ativos “virtuais” com as consequências que daí vão advir e que deverão reconduzir este fenómeno à sua dimensão real que será a de um casino, para os eventuais interessados, na especulação sobre o valor dos diversos “tokens” de “ativos virtuais”.
Artigo da autoria de José Carlos Tomás – Departamento de Desenvolvimento de Novos Negócios da Eupago.